OPINIÃO

Essa história de novo, Alícia?


| Tempo de leitura: 3 min

Carl G. Jüng, pai da psicanálise é famoso pela frase “Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo de destino", referindo-se às partes do nosso ser com necessidade de expressão e terem suas questões resolvidas. Caso sejam ignoradas, elas tendem a aparecer “no palco da nossa vida” nas horas mais inconvenientes.

Pouca gente sabe, contudo, que Jüng estudou cultura e filosofia oriental, contribuindo inclusive no desenvolvimento das suas teorias. Eu mesmo, só fui entender a profundidade do seu ditame através dos mesmos estudos, compreendendo um pouco mais sobre o poder do “Yin” – a energia oculta – quando eclode para sua forma “Yang” desvelada, fazendo tendências e desejos se transformarem em fatos da vida.

Contudo, fundamental no desenvolvimento desta percepção, foi o tratamento de uma amiga e paciente, que vou denominar aqui de Alícia, mas que possui uma história tão frequente de ser observada e, tenho certeza, de que muitos dos leitores(as) reconhecerão na narrativa “suas próprias Alícias”.

Ela me procurou para auxiliá-la no tratamento de um quadro de ansiedade, sendo que na época usava um remédio controlado para o caso e parecia que teria de aderir ao uso de um segundo. Jovem e bonita fisicamente, com seus vinte e poucos anos, tinha a mente agitada, problemas para dormir, dificuldades na digestão e com o funcionamento regular do intestino.

Além disso, tremor palpebral, palpitações e sudorese excessiva nas mãos davam a pista para que seu corpo estava ligado sempre em estado de alerta, como se estivesse em constante perigo. Conversando com ela, na consulta e nas aplicações que se seguiram, descobri que o “perigo” lhe era familiar: ela estava presa em um relacionamento com um namorado abusivo.

Apesar de reconhecer que seus sintomas decorriam de uma insegurança constante, sentindo-se ameaçada de perder o relacionamento caso não tivesse atitudes “corretas” aprovadas pelo parceiro, ela tinha mais medo de estar sozinha, algo que relacionava com o abandono e rejeição.

Ajudei a controlar os sintomas com a acupuntura e sugeri práticas que aumentavam sua autoestima. Aconselhei leituras e profissionais que podiam ajudá-la a se sentir capaz a ponto de escolher o melhor para sua integridade física e mental. Levou tempo, mas ela saiu da angústia, do remédio ... e do relacionamento em que estava.

Um ano após a alta, quem reaparece no meu consultório, pedindo ajuda para voltar a dormir? Vocês sabem. Agora sabem também que o título do artigo é uma frase que “quase me escapuliu” quando soube que ela estava de volta com aquele relacionamento.

O que eu aprendi com isso? Primeiro, a não julgar, pois não é o meu papel ali. Segundo, Alicia não fazia isso “de propósito”, pois ninguém escolhe conscientemente se machucar. No caso dela existia, nos bastidores da mente, uma necessidade de se sobressair diante de homens abusivos, dado experiências anteriores em uma época que não sabia nada sobre relacionamentos: a infância.

O tratamento da Alícia só foi completo quando ela olhou para si mesma e resolveu acolher essa necessidade, criando a permissão de progredir com a história. O que não cuidamos na luz (yang) da nossa mente se armazena na nossa sombra (yin) e pode explodir como um sintoma do corpo ou um fato recorrente na vida, mesmo de forma contraintuitiva.


Alexandre Martin é médico, especialista em acupuntura e com formação em medicina chinesa e osteopatia ([email protected])

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