
Era para ser uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Virou um feed de fofocas com filtro. Enquanto o Brasil real clama por regulamentação urgente das apostas esportivas, o Senado Federal se ajoelha diante de influencers que sorriem como se estivessem em um meet & greet pago. O que se viu nos depoimentos de Virginia Fonseca e Rico Melquiades na I das Bets não foi investigação: foi entretenimento disfarçado de república.
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E o mais grave: enquanto o Estado agoniza para fiscalizar, jovens brasileiros estão jogando o Bolsa Família no cassino digital do tigrinho. Aplicativos que deveriam ser regulados com a seriedade de uma política pública viraram playgrounds onde a esperança dos mais pobres é triturada sob a roleta da ilusão. A miséria virou monetização.
Virginia, musa do engajamento, entrou na sala da I como quem vai gravar um stories. Veio vestida com a imagem da filha, expressão de pureza, marketing emocional. Disse que recebia valores “regulares”, que não ganhava bônus pelas perdas de seguidores viciados. Mas se esquivou ao ser questionada sobre os lucros reais. Confessou que os vídeos em que “ganhava” dinheiro eram todos feitos com contas de demonstração. Era tudo encenação. Um truque. E ela não estava sozinha no palco.
No dia seguinte, entrou Rico Melquiades. Performático, debochado, articulado. Negou contas falsas, reafirmou apostas reais. Disse que seu patrimônio vinha do trabalho, dos realities, das publis. E o Senado ouviu como quem assiste a um podcast. Sem contraditório. Sem técnica. Sem vergonha. A relatora Soraya Thronicke tentou tocar a realidade quando exibiu um vídeo da influencer dizendo estar “viciada com cautela”. Foi interrompida por protestos. O presidente da I pediu respeito à depoente. Respeito a ela. Ao povo, nenhuma palavra.
É necessário fazer uma pausa. Porque o que está em jogo aqui não é a reputação de celebridades digitais. É a falência de um país onde o Estado terceiriza a educação financeira para o Instagram e a regulação econômica para o algoritmo. É a infância sendo enredada em apostas por vídeos com trilha sonora alegre e promessas de fortuna com um clique. É o vício em tempo real, distribuído como produto. E os senadores, ao invés de se levantarem contra esse sistema, pedem selfie com quem o promove.
Cleitinho, eleito com discurso de renovação política, tirou uma foto sorrindo ao lado de Virginia em plena I. Um retrato literal da falência institucional. Como se um delegado pedisse autógrafo ao suspeito antes de lavrar o flagrante. A cena viralizou. E, claro, foi publicada por ela. O Senado não regulamenta — ele engaja.
A I das Bets deveria ser um marco regulatório. Um o necessário para impedir que jovens depositem esperança em jogatinas disfarçadas de sorte. Deveria exigir transparência nas campanhas, taxação das plataformas, punição para quem simula ganhos em vídeos publicitários. Mas virou um teatro. Uma novela ruim.
Enquanto isso, nos rincões do país, mães solteiras usam o cartão do auxílio emergencial para tentar multiplicar cem reais em cassinos digitais. Crianças descobrem apostas antes de saberem o que é orçamento. E homens empobrecidos criam perfis falsos para conseguir bônus em plataformas ilegais. É um genocídio silencioso de sonhos. Um Estado que observa a roleta girar e torce para que, por milagre, pare na ética.
A regulamentação das apostas não é uma pauta moralista. É uma urgência. Um clamor por limite, por freio, por decência. Enquanto isso não for levado a sério, o Brasil continuará a premiar os que mentem melhor — e a punir os que acreditam. Como sempre foi.
Talvez, no fim de tudo, reste ao povo brasileiro a sensação de que sim, como a resposta da novela global “Vale Tudo”. Menos proteger quem mais precisa. Menos fazer justiça de verdade. Menos parar o circo e dizer, com todas as letras: basta.